sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Tráfico de drogas. Prova indireta STJ

  Segundo  a 6a.  Turma do STJ, "a ausência de apreensão da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de prova aptos a comprovarem o crime de tráfico. No caso, a denúncia fundamentou-se em provas obtidas pelas investigações policiais, dentre elas a quebra de sigilo telefônico, que são meios hábeis para comprovar a materialidade do delito perante a falta da droga, não caracterizando, assim, a ausência de justa causa para a ação penal". ( HC 131.455-MT... ). 

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O Sistema de justiça criminal

http://cla2905.jusbrasil.com.br/artigos/380544876/o-sistema-de-justica-criminal-democracia-requer-pratica-mas-sobretudo-conhecimento

O Sistema de justiça criminal: democracia requer prática, mas sobretudo conhecimento.

Por Cláudia Aguiar Britto

O Direito e as leis, especialmente as penais, são verdadeiros emaranhados jurídicos para muita gente. São normas e regras difíceis de serem compreendidas para boa parte dos cidadãos. Todavia, mesmo sem uma comunicação adequada, sem um aprendizado efetivo, cidadãos continuam a ser cobrados maciçamente pelos seus atos e posturas. Essa ignorância está relacionada não só à percepção do que é permitido ou não fazer (conduta típica) pelo sistema de poder penal, bem como e, sobretudo, ao conhecimento sobre o aparato procedimental criminal. Estados onde a miséria campeia, onde se visualiza escasso acesso à cultura, à educação e aos modelos comunitários básicos de compartilhamento de informação e comunicação (rádio, tv, jornal, telefone, Internet etc.), o conhecimento das pessoas sobre o sistema legal é algo imaginário.
Contudo, milhares de cidadãos, ainda que em diferentes condições humanas e materiais, vivem sob a égide e a guarda de uma mesmaConstituição, submetidos aos mesmos mecanismos de repressão e punição. Estão obrigados a observar a norma e a se ater a elas.
Segundo o IBGE[1], no país, 7,9% da população possui nível superior completo (em 2000, eram 4,4% pessoas com título de graduação). Em 1997, apenas 1/5 da população havia concluído o ensino fundamental na idade adequada (15 anos). O percentual atual é de 47,6%. No ensino médio, menos de 1/5 havia completado o ensino médio (o indicador atual é de 50, 2%.). A taxa de escolarização líquida da população de 18 a 24 anos corresponde a 14,4%. É evidente que o fato da ignorância, não pode ser simplesmente analisado pela perspectiva da formação acadêmica do sujeito, mas especialmente pelo aspecto da sua ignorância em relação ao estar no mundo, conhecer o mundo, do seu ser, enquanto ser no mundo. No Brasil, por óbvio, tudo isso fica muito mais evidenciado pela circunstância primeira da quantidade e qualidade de marginalizados sociais que – ainda – vivem em extrema pobreza[2].
Daí a ncessidade de se empreender ações voluntárias que atendam o outro na sua alteridade. Afinal de contas, como Bauman[3] bem assinala, num mundo em que pouquíssimas pessoas ainda continuam a acreditar que mudar a vida dos outros tenha alguma importância para a sua; num planeta em que cada indivíduo é abandonado a sua própria sorte; pensar e agir em prol de gente pobre, sem recursos, ou mesmo em benefício de réus ou condenados e suas respectivas famílias - tende a soar como uma verdadeira heresia, o maior dos pecados capitais.
Entretanto essa corresponsabilidade, ‘de todos como um de nós’, solidária, humanística e, sobretudo, responsável, pode reduzir as condições de assimetria existentes. A proteção aos direitos humanos só se manifesta, com especial ênfase, nas sociedades imbuidas de um vigoroso sentimento de solidariedade humana. Essa ignorância que atua principalmente contra os frágeis, não pode ser renegada à sua própria sorte. Sem esse esforço solidário concentrado para enfrentar a ignorância, a desigualdade e os privilégios decorrentes que giram em torno do sistema de justiça criminal no país, essa perversidade com o “outro” continuará pelas gerações futuras.
As ações orientadas para o alcance em torno do conhecimento somente poderão ter seu nó górdio desfeito se forem estabelecidas formas coletivas de aprendizagem, de respeito aos direitos humanos, da autocognição como pessoa, por meio de um processo de formação que assegure a competência comunicativa dos indivíduos. Esse tipo de conhecimento, de educação, de conscientização do que é bom, salutar e importante para o crescimento humano, para projeção e aplicação de direitos que garantam os desafios do porvir, pode servir como máscara protetora, como blindagem às influências das várias formas de poder.
Por isso mesmo, os ambientes jurídicos devem redundar em um espaço de acesso aos cidadãos suficientemente capazes de estabelecer laços comunicacionais com os diversos setores que compõem a estrutura de uma sociedade. As caixas herméticas, hierarquizadas e hierarquizantes do sistema de justiça penal devem ser abertas a partir do exercício da via comunicativa do aprendizado.
A sociedade civil, universidades, organizações não governamentais, sindicatos, associações de classe devem ser constantemente chamados e estimulados a participar da celebração comunicativa cooperativa do conhecimento, de forma que as populações locais ou regionais tenham acesso às informações básicas sobre o sistema de justiça criminal.
Essa via para o conhecimento pode ser encurtada se os profissionais do direito puderem alcançar aqueles mais desamparados, os mais vulneráveis. Porque conhecer é um direto humano. Conhecer é adquirir o poder de dialogar, de criticar, de dissentir, de consentir, de emancipar-se, enfim.

[2] O Brasil tem 16, 2 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza. Os primeiros resultados definitivos, divulgados em novembro de 2010, apontaram uma população formada por 190.732.694 pessoas (Censo 2010). Fonte: IBGE.
[3] Z. B. Tempos Líquidos. Zahar, 2007
Texto também publicado e disponível no sítio Unifeso. Edu. Br

sábado, 24 de setembro de 2016

Os juizados criminais e a filosofia comunicativa. www.ambito Jurídico.com.br

Os juizados criminais e a filosofia comunicativa.

Uma abordagem crítica 
por Claudia Aguiar Britto

http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?

n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17937&revista_caderno=22
Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar algumas reflexões críticas a respeito dos vinte e um anos da criação dos juizados especiais criminais. Com essa perspectiva, analisamos a então proposta legislativa de se buscar um processo mais simples, ágil, de acesso fácil e direto; porém, em contraponto à realidade prática do procedimento especial criminal.  Assim, como referencial teórico, utilizamos uma abordagem filosófica e algumas reflexões a partir do agir comunicacional habermasiano.
Palavras-chave: juizados criminais - atos de fala  -  Agir comunicativo.
Abstract: The present article is aimed at presenting some critical reflections on the twentieth anniversary of the creation of special criminal courts. With this perspective, we analyze the legislative proposal to seek a simpler process, agile, easy and direct access; however, in contrast the practical reality of the criminal procedure. As a theorical referential we made use of a philosofical approach and some reflexions based on the Habermasian communicative action.
Keywords:  criminal courts - speech acts- communicative action
Sumário.     1. Introdução. 2. A filosofia do Agir comunicativo no âmbito do Jecrim. 3. A fragilidade do sistema de justiça criminal no Brasil. 4. O modelo de “barganha penal”. 5. Perspectivas para uma Justiça Restaurativa. 6. Conclusão. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
Comemorar-se-á no dia 26 de setembro de 2016, o surgimento da Lei 9.099/95 - que instituiu os juizados especiais e ofereceu, sobretudo para a justiça penal, mecanismos dissuasórios de resolução da controvérsia (tais como a composição de danos civis, a transação penal e a suspensão condicional do processo)
 Contudo, algumas inquietações ainda possibilitam argumentações no plano prático. Pode-se dizer que essa “desformalização” do processo e das controvérsias a partir da solução consensual é relativamente recente na seara penal brasileira. Enquanto a primeira vertente representou a ideia de buscar um processo mais simples, ágil, de acesso fácil e direto, a outra pretendeu alçar instrumentos capazes de evitar o processo, mediante mecanismos institucionalizados de mediação.
Lembra Scarance[i] que a Lei 9.099/95 representou uma verdadeira revolução no sistema brasileiro, libertando a justiça para o consenso em matéria penal, mas que, à época, fortes resistências foram empreendidas na área criminal com vistas a impedir qualquer abertura no sentido de disponibilidade da ação e do processo, porque “percebeu-se que o Estado, a partir dos estudos criminológicos, não tinha condições de, com eficácia, dar vazão à intensa demanda da criminalidade”.
A proposta trouxe também a ideia de uma forma alternativa pela via procedimental, isto é, uma fase pré-processual de natureza conciliadora, na qual deveria ser tentado um acordo (composição dos danos civis). Primeiro, entre o suposto autor do fato e a vítima (dependendo da qualificação jurídica). Numa segunda via, por meio da transação penal, estimulava-se a negociação entre o MP e o suspeito da prática delitiva, a fim de evitar o processo criminal. Supostos agentes praticantes de infrações menos graves poderiam receber uma medida despenalizadora proposta pelo MP e homologada pelo juiz, que, depois de cumprida pelo suspeito, extinguiria a sua punibilidade. Quando aceita pelo autor do fato, a transação implicaria na submissão a uma das penas alternativas previstas no art. 43 e seguintes do Código Penal. Outro mecanismo com vistas a afastar o processo criminal viria através do sursis processual (cujos moldes foram abarcados, em boa medida, a partir do modelo do sursis penal, constante no art. 77  do Código Penal).
Nesses quase vinte e um anos de existência da Lei, muitos comemoram. Afinal, dela resultou uma enormidade de resoluções de controvérsia, por meio de medidas despenalizadoras, afastando o pretenso autor do fato de sanções mais duras. Outros, porém, se juntaram ao exército daqueles soldados que, desde o início se opuseram, com veemência, ao mecanismo do Jecrim.
 Vários são os argumentos contrários ao modelo de justiça consensual, sobretudo porque pesa sobre ele a ofensa aos direitos humanos, principalmente aqueles relacionados aos direitos fundamentais. A repulsa ao mecanismo do consenso está muito mais ligada ao plano das garantias processuais, especialmente no que se refere à transação penal porque, através da possibilidade do acordo entre as partes, se acena com a perspectiva de que o réu venha a se conformar com a acusação em troca de sua renúncia ao direito de exercer plenamente as garantias advindas da cláusula fundamental do devido processo legal. Segundo esse pensamento, a “chantagem” ao réu surge nas ameaças a um tratamento mais rigoroso, de uma pena mais severa, do risco de um cálculo errado, para todo aquele que se negue a negociar[ii]
Evidentemente que toda essa roupagem oferecida pela citada lei realmente não poderia surtir - como não surtiu - o efeito desejado. A começar pelo fato de que, ainda que se quisesse dar celeridade às causas relativas às infrações menos graves, seria necessário, dentro de um ambiente democrático, que os envolvidos fossem instados a falar, que pudessem ser ouvidos. Haveria como há de haver espaço para que, através do diálogo, os participantes manifestem suas disposições.[iii]
II. A filosofia do agir comunicativo no âmbito do JECRIM

Mas o que significa pensar e agir, a partir da filosofia comunicacional de Habermas?  A racionalidade comunicativa sustentada pelo filósofo está basicamente focada no conceito de se “alcançar entendimento”; e para obtê-lo, os atores devem reconhecer intersubjetivamente as pretensões de validade propostas nos atos de fala. .  Alcançar um entendimento é um conceito normativo que supõe não coercitividade[iv].
Segundo o filósofo, para a obtenção do consenso sobre algo, as pretensões de validade do agir comunicativo devem estar presentes na relação intersubjetiva, porque todo consenso depende de um reconhecimento intersubjetivo de pretensões universais.  Inicialmente é necessário dizer que o consenso é compreendido de duas maneiras: por meio do chamado “consenso fático” (quotidianeidade) e do “consenso fundado” (racionalidade dos argumentos).  O consenso fundado está baseado em quatro pilares: a inteligibilidade, a verdade, a correção e a sinceridade.   Assim, é imprescindível uma linguagem acessível, clara. Por outro lado, o conteúdo que se deseja transmitir deve ser verossímil. As intenções propostas também devem permear-se de sinceridade. Por fim, a manifestação do falante deve ser correta e adequada dentro das regras e valores vigentes. Então, esse processo pelo qual se pode chegar a um entendimento se estabelece segundo as quatro fases descritas. A intersubjetividade é gerada exatamente no uso da linguagem comum, fruto do resultado de uma interação entre sujeitos capazes de falar e agir, e que se comunicam com o fito de se entenderem.   
Endereçando estas reflexões para o campo do processo penal, compreendemos que o Juiz e as partes devem tornar compreensível o sentido da fala na esfera da relação processual (inteligibilidade), devem reconhecer a verdade do enunciado oferecido através do ato de fala (veracidade). Também se postula que os interlocutores devem reconhecer a correção da norma (norma penal e constitucional) que, por meio do ato de fala, foi tida como cumprida. Alia-se às três classes acima, a quarta e última pretensão, ou seja, quando a sinceridade dos entes envolvidos não tiver sido posta em discussão. Trata-se da necessidade de buscar intersubjetivamente as manifestações dos participantes a partir de suas pretensões de validade. Os atores processuais devem ser capazes de orientar suas ações segundo pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas: a inteligibilidade, a verdade, a correção e a sinceridade[v].
Neste sentido, há que se dizer que  são as pretensões de validade, nada mais nada menos, que os fios condutores que irão ligar o motor dessa máquina linguístico-comunicacional que se aspira para o processo penal, sobretudo para os juizados criminais.
 Firma-se, com essa ideia, a necessidade de dotar os participantes de competência argumentativa – circunstância indissociável ao processo comunicacional. Sem esse nivelamento de habilidade de debate entre os envolvidos e o espaço suficiente à fala, o consenso não acontece. Justiça consensual, sem a busca efetiva de um entendimento, permeado pelas pretensões de base, não pode ser compreendida como justiça do consenso.
III. A fragilidade do sistema de justiça consensual no Brasil
Trabalhando com as perspectivas oferecidas no âmbito do Jecrim, é possível, à primeira vista, dizer que a chamada justiça consensual é, em tese, profilática; porém, na prática, pode ser bem traiçoeira, por diferentes motivos. Primeiro, e especialmente, por força da própria engrenagem do sistema legal, que permite, automaticamente, a remessa de peças da polícia para a justiça criminal sem que ninguém, em regra, possa frear isso. Em segundo plano, ademais, porque as formas “coativas” empregadas em face do autor do fato para que aceite a proposta de transação penal, não como escopo para pôr fim ao litígio e para a busca do consenso, mas baseado em estatísticas de “produtividade” e redução do espaço/custo financeiro de trabalho, constituem fenômenos corriqueiros, contrários à lógica do direito.
Esses dois pontos já seriam suficientes para demonstrar que o modelo de justiça consensual no Brasil é muito frágil. Frágil porque os profissionais envolvidos também não estão preparados para exercê-lo de forma convincente. A prática demonstra que, na maioria dos casos, as demandas são deixadas a cargo de conciliadores leigos, que parecem ser doutrinados a tentar a composição de danos e até mesmo a transação penal a qualquer custo. E quando não conseguem êxito, o órgão ministerial, que deveria intervir com maior responsabilidade, nem sempre assim o faz. Em geral, as partes que mais veementemente recusam o acordo acabam se tornando antipatizadas para a acusação.
Em termos de trâmite judicial, a baixa ofensividade dos delitos dessa competência pode ser refletida no animusjudicante e ministerial. Às vezes, a investigação para tais infrações, no que diz respeito ao onus probandi, por parte do órgão acusador, é tratada como mera circunstância. Assim, em nome do princípio da celeridade, aviltam-se direitos e a democracia perde espaço. Em outra vertente, embora a lei proponha o acordo entre os envolvidos, com a aceitação da medida despenalizadora pelo suposto autor do fato, essa resposta penal representa nada mais nada menos que uma indisfarçável, e muitas vezes indigesta, sanção penal. Embora se afirme que a aceitação das propostas não macula a “fac” (folha de antecedentes criminais) do aceitante para efeito de reincidência, fato é que o sujeito deverá cumprir uma das penalidades previstas no CP estipuladas pelo MP e homologada pelo juiz. O registro da aceitação da proposta, todavia, permanecerá para efeito de concessão ou não de novo benefício dessa natureza.
Por outro lado, não se observa, nesses juizados, o espaço e o tempo necessários para que o diálogo ocorra numa relação intersubjetiva em que os participantes reconheçam suas pretensões de validade. O princípio da celeridade (que norteia a estrutura dos juizados especiais) parece ser tão levado a sério - em sentido negativo -, que o que menos se vê nesse ambiente é o diálogo. Procedimentos são iniciados e terminados tão rapidamente que, na maioria das vezes, não se permite, nem mesmo, colocar em prática a própria oralidade (segundo princípio norteador dos Jecrim’s). É comum o uso de fórmulas prontas para as assentadas conciliatórias e termos padronizados de transação penal. No entanto, as estatísticas oficiais apontam, aparentemente, para exitosos e justos consensos. Mas consenso sem diálogo não é consenso. Justiça consensual sem diálogo não é justiça; trata-se apenas de um arremedo de Justiça. Um insólito retoricismo, se pudesse aqui exprimir o manuseio da expressão consensual nas cercanias da justiça.
A experiência dos juizados especiais criminais revela que o problema do acesso à justiça estatal não está resolvido. Para Ghiringhelli de Azevedo[vi], esse acesso depende mais da iniciativa administrativa dos setores que gerenciam o sistema do que de uma nova disposição legal; e resolver essa questão exige gastos, pontua o autor. De fato, a informalidade da justiça penal ainda não conseguiu desburocratizar-se, desapegar-se dessa estrutura cartorária, hermética, muitas vezes confusa e paradoxal.  Essa disposição administrativa e financeira, contudo, representa apenas uma pequena parte do problema em torno da justiça consensual. Para pôr em ordem os desalinhados procedimentais deve haver um esforço cooperativo ao diálogo das pessoas envolvidas.
O problema não está cingido apenas ao réu e à administração pública, que não dispõe de recursos financeiros para arcar com as demandas. O fato relaciona-se muito mais com a disposição e o compromisso dos atores processuais, com a abertura dialogal, do que propriamente com aquelas ligadas ao fomento financeiro.
 Outro dado importante nesse contexto é o que se refere à busca da verdade processual. Se, para alguns, o processo penal não favorece o descobrimento da verdade nos moldes formulados e empregados, na dura realidade forense dos juizados criminais, a verdade está longe, muito longe de se fazer enxergar.
Nessa esteira, uma análise da atuação dos Jecrim’s nesses quase vinte e um anos do surgimento da Lei 9.099 atesta que imaginar que as partes, ao dialogarem, diriam a verdade, promoveriam uma exata reconstrução dos fatos e reconheceriam suas responsabilidades, é negar uma realidade que salta aos olhos. A questão do acordo, da transação penal e até mesmo do sursis processual penal, se posta à luz da consensualidade, revelará que os participantes, ao tentarem ingressar num debate argumentativo, não conseguem ficar em pé de igualdade com os atores públicos do Estado, mantendo um nivelamento igualitário e suficientemente capaz de habilitá-los para um possível consenso.
IV. O Modelo de “barganha penal” (plea bargaining e guilty plea )
Em termos comparativos, o modelo de acordos e mediações na justiça criminal estadunidense é uma boa fonte de reflexões. A razão primária para a prevalência da negociação entre as partes é a eficiência e o controle administrativo[vii].  Muitos juízes e procuradores têm argumentado que um decréscimo substancial em acordos criaria um caos no sistema de justiça. Eles acreditam que a negociação é a sustentação essencial para a existência contínua de um sistema de justiça organizada. No modelo estadunidense, os mecanismos de solução de controvérsia do chamado sistema de “barganha penal” (plea bargaining e guilty plea) encontram adeptos e opositores.
Os defensores da negociação penal argumentam que o guilty plea (by pleading guilty the defendent):
1. assegura uma pronta e certa aplicação das medidas adequadas;
2. evita atraso na prestação jurisdicional e aumenta a probabilidade da pronta e certa aplicação de medidas corretivas aos acusados;
3. o acusado, reconhecendo a sua culpa, manifesta o desejo de aceitar a responsabilidade pela conduta;
4. evita ser submetido a um julgamento público, quando as consequências têm mais valor do que qualquer necessidade legítima para tal;
5. impede um excessivo dano ao defendente, a partir da forma convincente de condenação;
6. possibilita certas concessões quando o réu oferece cooperação na busca de outros elementos.
Por outro lado, os que se opõem à negociação pelo sistema guilty plea baseiam-se no fato de que existe um perigo real de pessoas inocentes serem condenadas. A crítica também se estende às diferenças de tratamento observadas nas sentenças (de negociação e julgamento). Tem sido alegado, por exemplo, que juízes induzem negociações impondo sentenças mais severas quando o réu escolhe o julgamento ao invés da negociação[viii].
Por outro lado, procuradores, ao barganhar, somente intencionam promover o andamento dos feitos e, por essa visão, barganhar é distribuir irregularmente e de forma desigual entre os envolvidos a habilidade para se conseguir, de forma leniente, um acordo. Assim, segundo H. Miller et al., barganhar remete a um mecanismo ineficiente e inútil, além do quê, aqueles que optam por um julgamento, isto é, que não aceitam submeter-se a acordos, acabam geralmente recebendo penas mais longas.
No caso de negociação por meio do plea bargaining, alguns compreendem que tal mecanismo é desastroso e deveria ser abolido porque, dentre outras coisas,  um  réu inocente a injusta e a inadmissível escolha de negociar sua condição jurídica para evitar um julgamento. Em linhas gerais, argumenta-se que a condenação, punição e litígio são produtos públicos com efeitos sociais poderosos, ao passo que os mecanismos em prol da negociação entre as partes (no estilo contratual) afastam a ingerência do Estado, ao mesmo tempo em que introduzem um aumento de custos às agências responsáveis pelos processos de negociação.
Para Schulhofer[ix], o acordo não irá melhorar o bem-estar das partes afetadas numa negociação. O réu inocente, diante de uma pequena possibilidade de condenação, poderia se interessar em aceitar uma condenação com uma pequena pena. Porém, a escolha do réu pela negociação pode ser racional através de sua própria perspectiva, mas isso impõe custos à sociedade, minando a confiança pública porque, se por um lado as condenações criminais transmitem uma mensagem de que o acusado é culpado, por outro, mantém íntegra uma dúvida razoável quanto à sua verdadeira culpabilidade.
No que concerne à mediação[x], desde 1984 ela é empregada na França e se desenvolve atualmente em larga escala. A palavra mediação remonta há séculos, algo em torno de 5.000 anos, e significava, inicialmente, segundo Morineau[xi], a ideia de se perpetuar o liame entre a divindade e os seres mortais, a conexão entre Deus e os homens (le lien à rétablir entre Dieu et les hommes). A história de toda a civilização é resultado da procura constante de se construir os fundamentos de um equilíbrio que dependa do próprio homem.  Por esse raciocínio, a mediação significa, portanto, o espaço oferecido para se estabelecer uma conexão entre aquele que clama por auxílio e o auxílio para aquele que precisa de proteção.
Com o exemplo do modelo consensual instituído em 1995 através da Lei 9.099 pareceu, à primeira vista, que seria possível desenhar um discurso prático mais eficiente. Todavia, os princípios fundamentais iniciais que vestiriam a então novata lei – da oportunidade regrada, da autonomia da vontade e da desnecessidade da pena de prisão (MOLINA, 2002, p. 60) – não foram suficientes para conduzir um procedimento que aparentemente serviria para pôr em prática o consenso e a mediação.
Em verdade, não seria ingenuidade pensar que a própria engrenagem do sistema legal pudesse permitir, automaticamente, a remessa de peças da polícia para a justiça criminal? Seria possível imaginar que, instantaneamente, de um dia para o outro, o cidadão comum (inscrito num registro de ocorrência) vem a tornar-se autor do fato e ter seu nome estampado nos registros judiciais? Não seria também um tanto ingênuo não supor que muitos desses registros – ainda – são confeccionados ao apagar das luzes das delegacias policiais, produzidos com fins estratégicos, além de utilizados, em significativa parcela, com o objetivo de angariar troca de favores nada lícitos (ameaças) ou mesmo para servirem de (re)negociações de dívidas escusas ligadas a fins econômicos? Da mesma forma, não seria ingenuidade pensar que as diferenças de forças no campo processual, agora entre as pessoas envolvidas diretamente no conflito, fossem realmente ajustadas ou supridas pelos conciliadores? A simples tramitação do procedimento penal inaugura não somente um irreparável constrangimento imposto ao suposto autor de uma infração diminuta, mas sobretudo, e potencialmente, o risco de uma futura restrição de direitos[1]. A realidade mostra que mediadores/conciliadores, muitas vezes, não só não dispõem de capacidade para a condução de um diálogo fundado, mas, sobretudo, não estão devidamente capacitados para compreender as disparidades encontradas, em boa medida, entre as partes envolvidas.
Por outro lado, como já ressaltado em linhas anteriores, as formas coativas empregadas em face do autor do fato para que aceite a proposta de transação penal, não como objetivo central à busca do consenso, mas baseado em estatísticas de produtividade e redução do espaço/custo financeiro de trabalho, também é observável na práxis cotidiana. Com efeito, a proposta de transação, quando aceita nessas condições, representa um consenso ingênuo, pois não foi submetido a um assentimento racional. Um dos envolvidos (no caso, o autor do fato) acaba concordando com a proposta transacional sem a devida e exata compreensão do que efetivamente acordou com o MP e com a Justiça.
V. Perspectivas para uma Justiça Restaurativa
Nessa linha, a então novata (pelo menos em solo brasileiro) Justiça Restaurativa com gritos de repúdio ao processo punitivo de viés opressivo, propugnando a via da resolução de problemas de forma colaborativa. Abordagens e práticas restaurativas proporcionariam, segundo idealizações, a oportunidade de a vítima e o infrator manifestarem seus sentimentos, expressarem-se, descreverem como foram atingidos e dizerem de que maneira o conflito poderia ser apaziguado e solucionado. Afastando a figura pesada e secular do Estado e seus representantes e transferindo o diálogo (entre vítima e infrator) para os grupos mais próximos à comunidade a que pertencem (ONG´s, associações comunitárias, de classe, centros universitários etc.), trabalha-se com a ideia de um sistema menos opressivo. Planos para reparar os danos sofridos ou o trabalho integrativo e interativo fincado e desenvolvido com vistas a evitar novos estorvos são sugestões bem alimentadas pela justiça restaurativa. Porém, ainda que nobre, a proposta, especialmente pela condição de deixar a figura do Estado sombreada, à margem do episódio conflitivo, enquanto os próprios envolvidos diretos resolvem suas pendências, corre o risco de ser mal sucedida; porque há de haver nisso tudo mecanismos cognitivos realmente satisfatórios e exequíveis. Não se chega a um entendimento sem que todos os participantes do diálogo possuam, de fato, o mesmo nível de conhecimento, de compreensão daquilo que se coloca à mesa do debate.
VI. Conclusão
Para concluir e retomando a perspectiva brasileira, considerando o entendimento como um processo que abrange uma série de atos de fala, poder-se-ia dizer que o ato de fala de um participante somente teria sucesso se o outro participante aceitasse a oferta contida nesse ato manifestando “sim” ou “não” à proposta do MP, apoiada em pretensões de validade.
Para que seja possível atender ao que dispõe o edifício comunicativo vislumbrado para a esfera do Jecrim, será necessário um verdadeiro esforço cooperativo dos participantes do diálogo: um novo pensar, agir e falar.  Quando os participantes pretenderem um acordo motivado racionalmente e entenderem que ele poderá ser alcançado, pelo menos a princípio haverá o espaço para o discurso e, consequentemente, para o alcance do consenso.
Contudo, o modelo de justiça consensual do Brasil que ainda se observa na prática cotidiana, como dito alhures, está longe de seguir o padrão comunicativo. Nele não há espaço para o consenso, porque não há espaço para o diálogo. Por outro lado, se há quem alegue que a verdade processual poderia ser extraída por meio do contraditório efetivo, tendo as partes reais condições de exporem seus argumentos e contra-argumentos, no formato Jecrim, essa proposta se esvai.
otas:
[1]     Veja-se a crítica de Morais da Rosa. (Guia Compacto do Processo Penal segundo a teoria dos jogos.  2013, p. 75), para quem os Juizados Especiais, embora equipados com “para-juízes”, não respondem a um mínimo de garantias a que o sujeito processado faz jus, democraticamente. Nessa linha contra os JECRIM’s, por todos: Miranda Coutinho (2005, p., 03-14). Recomenda-se leitura nesse contexto:
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Teses e Antíteses sobre os processos de Informalização e privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[i]  SCARANCE, Antônio Fernandes Processo penal constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
[ii]  KARAM, Maria Lucia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[iii] AGUIAR BRITTO. Processo penal comunicativo. Comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá. 2014. Artigo baseado no livro da autora e adaptado exclusivamente para fins acadêmicos.
[iv] HABERMAS, J. Agir comunicativo. v. I e II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Martins Fontes, 2012, v.1.
[v] AGUIAR BRITTO. Processo penal comunicativo. Comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá. 2014.
[vi]GhIringhelli de Azevedo. Conciliar ou punir? Dilemas do controle penal na época contemporânea. In:Diálogos sobre a justiça dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. pp. 55-79.
[vii] MILLER, H. McDONALD, W. CREMER, J. Plea bargaining
 in the United States (1978). In: guilty pleas and bargaining. Chapter nine. American criminal Procedure, cases and commentary. Fifth edition. Stephen A. Saltzburg, Daniel J. Capra, West Punishing Co, 1996, St Paul. Em tradução livre da autora.
[ix]  SCHULHOFER. 101, Yale L. J. 1979 (1992), (op. Cit.) p. 819. In Guilty pleas and Bargaining. AMERICAN CRIMINAL PROCEDURE. Cases and commentary. fifith edition. Stephen A. Salztburg. Daniel J. Capra. St PualkMinn: West Publishing Co. 1996. Em tradução livre da autora
[x] Cf. Prado (2002, p. 89): A mediação comporta a intervenção de um mediador – um árbitro – absolutamente desinteressado do resultado material do acerto entre as partes, mediador que se dispõe a intervir unicamente para tentar fazer com que as partes resolvam de forma consensual o dilema que as contrapõe. Justiça penal consensual. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (Org.) Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informatização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. pp. 81-97.
[xi] MORINEAU, Jacqueline. Des origines de la médiation “humaniste”. In: Sociologia del diritto n. 3, v. 34. pp. 165-174, 2007. Por livre tradução da autora.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Donald Trump e o efeito "mauzinho” de ser. The Donald Duck Hells

The Donald Duck Hells
Donald Trump e o efeito "mauzinho” de ser  

Por Cláudia Aguiar Britto[1]


Por que Donald Trump e sua indefectível característica preconceituosa, racista, xenófoba e manifestamente desmedida, consegue influenciar parte da população que integra a maior potência econômica do planeta?  Está aí um enigma difícil de ser decifrado.
Há algum tempo, os “Michaels” têm se destacado. Desde Michael Jackson, passando por Michael Jordam, Michael Jonhson e Michael Phelps, os astros norte-americanos têm projetado suas marcas pelo mundo; seja pelo esforço e dedicação nas atividades que desempenham, seja pelas mensagens transferidas por meio de letras e melodias, por atitudes ou discursos. Entretanto, por outra vertente, o efeito “mauzinho”  de ser de Donald Trump tem prevalecido na América.
Nos palanques políticos e nas esferas midiáticas, Trump já foi capaz de dizer que os mexicanos “trazem as drogas, trazem o crime e os estupradores”... E que pretende construir um muro separando os países. O candidato chegou a questionar a saúde mental do atual Presidente por ter permitido a entrada de pessoas com ebola nos EUA; indignou-se com a possibilidade de homens negros contarem a sua fortuna,  vociferando que: “homens negros contando o meu dinheiro?!” “Eu odeio isso !”  E ainda  reacendeu o confronto ao afirmar que bombardearia todo o petróleo do Estado islâmico no Iraque e mandaria grandes corporações construírem por lá... E por aí vai... A metralhadora giratória de Donald não para. 
Ainda que toda essa carga ideológica implantada na fala do candidato  esteja centrada nos Estados Unidos,  é preciso compreender que em um  mundo globalizado os sintomas e as consequências desse tipo de discurso  são sentidos de imediato em todos os cantos. A ideologia discriminatória consegue realmente ultrapassar os limites da sua atuação para alcançar outras nações e seus sistemas jurídicos internos, cujos interesses são significativamente diversos.
Como se sabe, os discursos servem para transformar, sair do “ponto zero”, progredir, mas também existem e persistem aqueles que são utilizados para destruir.
Nunca é demais relembrar o fato de que o totalitarismo nazifascista e o holocausto concebiam um modelo de sociedade estruturado na razão. Os discursos empregados por seus mentores serviram para arregimentar um exército de vítimas da razão instrumental, conforme explicou Horkheimer. E os grupos vulneráveis, os camponeses, artesãos, comerciantes, pequenos empresários, as donas de casa e toda massa de gente que constituía a classe média alemã, paradoxalmente, formariam o apoio ativo que levou os nazistas a tomarem o poder.[i] Um texto do filósofo Heidegger publicado no jornal de estudantes de Freiburg em 1933 reforçaria assim a tese de  que ele servira de estímulo ao povo para encontrar a “grandeza e verdade” de sua determinação. E esse “encontro” com a grandeza e a verdade pelo povo alemão desaguaria numa decisão suprema de sua própria liberdade. Ou seja: a vontade coletiva fora subsumida à vontade de seu Führer. [ii] A “verdade” da determinação do povo era nada mais do que a verdade de Hitler. A “decisão suprema de sua liberdade” significava, ao fim e ao cabo, o amalgamento, a pasteurização dos ideais hitlerianos.
Nas digressões de Perelman, quando usamos a argumentação, isto implica que renunciamos ao recurso único da força, dando apreço à adesão do interlocutor, impedindo que as pessoas sejam tratadas como objeto.   A comunicação tem realmente esse poder. Ela não é uma transferência unilateral de informação. Entretanto, parece ser evidente também, que a prática discursiva não tem como garantir sempre a integridade, a infalibilidade, a clareza, a segurança, o respeito ou a estabilidade de resultados e propostas.
Mais recentemente, Habermas conta que após o “11 de Setembro” passou a ser frequentemente indagado se, em razão desses fenômenos da violência, a concepção do agir orientado para o entendimento, tal qual ele desenvolvera na teoria do agir comunicativo, não teria ficado completamente desacreditada. Ele respondeu que, justamente porque as relações sociais de violência, agir estratégico e manipulação são realizados, não é possível ignorar dois outros fatores: primeiro, que a prática da convivência diária residiria numa base sólida e convicções comuns, evidências culturais, expectativas recíprocas; e, segundo, que os conflitos ocorreriam em razão dos distúrbios de comunicação.[iii]
            Como destaca o filósofo alemão, a espiral da violência começa com uma espiral de comunicação prejudicada através da espiral de uma desconfiança recíproca descontrolada, que leva à interrupção da comunicação. A destruição e a corrupção da linguagem especialmente sentidas nos países em desenvolvimento e os menos favorecidos trazem graves consequências, produzem drásticas reações, fazem operar uma espécie de “vingança dos oprimidos”, aventada por Habermas, para compensar o silêncio irrompido, sepulcral e autoritário que permeou e permeia os sistemas até hoje.
  Em razão das inúmeras declarações públicas discriminatórias, Donald tem sido alvo de severas criticas. Entretanto, parece não se importar com elas. 
             Na contramão do modelo de corresponsabilidade solidária, a qual se emprega o conceito  moderno de humanismo, e que se almeja para a sociedade do século XXI, Trump serve-se do efeito “mal-humorado - mauzinho - nefasto”  de Donald  Duck Hells. Uma espécie de Pato Donald dos infernos, cunhamos.  Em 1942, o famoso Pato Donald de Walt Disney foi forçosamente integrado à propaganda nazista. As histórias traçadas à época, inspiradas na “face do Führer”, mostravam Donald Duck à frente da produção de armamento bélico, bem como instado a contribuir com impostos destinados a patrocinar a guerra.      
Donald adota o modelo Duck. Não sabe nadar, não mergulha fundo, e, de vez em quando, se afoga nos seus próprios impropérios. E o que faz Donald Trump se tornar um ícone, se notabilizar e alçar uma visibilidade incomum?  O que faz Donald encontrar tantos adeptos dispostos a comprar o seu pacote recheado de ódio, discriminação e seletivização? Um pacote embrulhado com o papel nefasto da desunião? Vivemos realmente tempos sombrios ou tudo isso faz parte desse processo de depuração e expurgo? Da destruição do que estava encoberto?
Para toda evidência há outros tipos de exteriorização para as quais pode não haver boas razões. Muitas experiências podem estar ancoradas em fundamentos e argumentos, porém envoltas por suscetibilidades e desejos internos que não implicam necessariamente em bons propósitos.
A necessidade de se buscar e alcançar atitudes de responsabilidade social, solidária, cooperativa, “universalizada”; um modelo que atenda o outro na sua alteridade é premente.  Há de se ‘manter vivo o sentimento de humanidade’, como já destacou Habermas. Aquele respeito por todos e na responsabilização solidária geral de cada um pelo outro. O respeito não abarca apenas aqueles que são iguais, congêneres[iv], mas, sobretudo, aquele “outro” em sua alteridade, em suas diferenças e em suas idiossincrasias.
Queiram os deuses que o efeito “mauzinho” de Donald Duck Hells seja arrefecido, transformado e revigorado em ações positivas. O planeta Terra merece e agradece. As gerações futuras também.  A assimilação de uma “responsabilização solidária” pelo outro ‘como um dos nossos’, tendo como premissa a abolição de todas as formas de exclusão, integrando e incluindo os outsiders, parece ser uma das trilhas desse emaranhado processo construtivo de comunicação.
'Pato Donald dos infernos', mal humorado, rabugento ou ainda na versão “mauzinho”, só mesmo nos divertidos gibis.



[1] Cláudia Aguiar Britto.Pós doutora em Direitos Humanos e democracia. Doutora e Mestre em Direito. Professora Universitária. Advogada




[i] Habermas, J.  Agir comunicativo. v. I e II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Martins Fontes, 2012, v.1, p. 635.
[ii] Cf. Habermas (2010, p. 161): “[...] o povo alemão é chamado à votação pelo Führer. Porém, o Führer nada pede ao povo, antes lhe dá a possibilidade mais direta de uma decisão suprema na sua liberdade” [...]. Em outra passagem, Heidegger assim escreve: “A nossa vontade de auto responsabilidade nacionalista quer que cada povo encontre a grandeza e a verdade da sua determinação [...]. Há apenas uma única vontade para a existência plena do Estado. O Führer fez despertar essa vontade em todo o povo e moldou-a numa única decisão”. Direito e democracia entre facticidade e validade. v. I. 2. ed. Tradução de Flávio Siebeneicher. Rio de Janeiro: BTU, 2010.
[iii] Aguiar Britto. Processo Penal Comunicativo. Comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá. 2014.
[iv] HABERMAS, A inclusão do outro: estudo de Teoria Política. Tradução de Sperber G; Soethe, P. A.; Mota, M. C; 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007 a. 201 pp. 7,8

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Presunção de inocência parte 3


O STF se curvará à CF e à lei no caso da presunção da inocência?

Por Lênio Streck. www.conjur.com.br

"Rios de tinta e milhares de caracteres foram gastos para discutir o julgamento do Habeas Corpus 126.292, que autorizou a execução provisória da sentença de segundo grau mesmo que haja recursos interpostos. Não conseguiria colocar aqui as dezenas de links sobre o tema. Como se sabe, em fevereiro de 2016 o Supremo Tribunal Federal fez um giro de 180 graus em sua jurisprudência e deu nova interpretação à presunção da inocência.
Na verdade, o STF fez uma simples alteração de sua jurisprudência por 7x4. Por que “simples”? Porque não enfrentou os argumentos até então consolidados. Explico: se quisermos mesmo pegar a sério a questão de precedentes e vinculação destare decisis horizontal, então a decisão de fevereiro deveria ter realizado um overruling acerca de sua decisão anterior.
Overruling ocorre quando um tribunal se dá conta de que tem de mudar sua jurisprudência. Deve demonstrar porque está assim agindo. Além de explicar as razões legais, deve dizer por qual prognose o faz. Overrulingquer dizer: o caso “provocador” deve ser um “caso” que tenha o condão de provocar essa reviravolta. Bom, na verdade, isso é assim no common law.
De todo modo, se quisermos aplicar e seguir esse modo de aplicar por aqui, então que sejamos fiéis ao original e não façamos uma jaboticaba. Na verdade, o STF parece mais ter feito um overlapping no texto legal. A começar que o caso que originou o HC 126.292 (leading case, para imitar o que se diz no common law) diz respeito a um acusado que respondeu a apelação em liberdade e o Tribunal de Justiça de São Paulo — por incrível que pareça — decretou “de oficio” a prisão”. Isso é fato. Peço desculpas pela minha pergunta, mas é assim que se faz uma mudança jurisprudencial?
Deixando de lado qualquer aspecto passional ou ideológico, é facilmente constatável que o STF não assumiu de forma consistente o ônus argumentativo para fazer um overruling, porque isso exigiria ampliar a garantia e não a restringir (sendo mais claro — e este é o ponto — com ou sem exigência de overruling, o STF não fundamentou porque fez a virada). O que ele fez foi lançar mão de um argumento utilitarista com uma pitada ad hoc de ponderação (ela acaba sempre aparecendo) que se tentou fazer entre garantia da liberdade individual e eficácia do sistema penal. Ora, como já chamei a atenção em tantos textos, o STF não pode sacrificar um direito individual por razões de política criminal. De uma vez por todas: mesmo para Alexy essa perspectiva não seria universalizável, pois implicaria afirmar a possibilidade de relativização de qualquer direito, individual ou coletivo, qualquer um mesmo, se o tribunal começar a se meter a fazer política assim, contra — e não a favor — de direitos fundamentais. Isso é assim, doa a quem doer. É o ônus da democracia. Ou atiremos fora a água suja com a criança junto?
Mesmo um overruling exige razões consistentes com os princípios constitucionais. Aliás, especialmente no caso, somente se justifica para ampliar e não para restringir direitos. Pois implica uma redistribuição do ônus da prova que põe em risco a defesa, o contraditório, o devido processo legal. O Supremo Tribunal Federal não pode, portanto, restringir direitos usando argumentos do tipo, "a execução provisória é mais eficaz no combate ao crime". E, ainda que pudesse, com base em que poderia fazer uma afirmação dessas? Nas estatísticas (ver artigo sobre o lado oculto dos números da presunção da inocência) do procurador-geral da República? Do ministro Roberto Barroso? Da FGV?
Um exemplo de overruling
Como esta coluna tem também objetivos pedagógicos, dou o seguinte exemplo (bem familiar, pois não?): suponha-se que em 2009 não tivesse havido o julgado do HC 84.078/MG (apaguemos ele da memória) e a jurisprudência continuasse a permitir execuções provisórias. Muito bem. Sobrevindo, em 2011, a nova redação do Código de Processo Penal (artigo 283), seria obrigação do STF fazer um overruling acerca de sua posição. Por quê? Porque ocorreu uma alteração na integridade do direito. Já não poderia, com a superveniência do artigo 283, o STF ser coerente no erro. Daí que, fazendo um overruling, passaria a obedecer ao que o legislador disse (lembremos: estou fazendo um exemplo como se a decisão no HC 84.078 não tivesse acontecido). Simples assim. Isso é um exemplo de overruling. Claro que há outras possibilidades. Mas penso que, aqui, serve bem o exemplo.
Agora trago a questão para a concretude. Fato: em 2009 o STF altera sua jurisprudência fazendo um overruling em face da Constituição (isto pode ser considerado overruling). Fazendo uma certa inversão na “ordem natural das coisas”, o parlamento veio atrás do que decidiu o STF e aprovou o artigo 283 do CPP exatamente porque houve overruling e para fincar a âncora do resultado do overruling. Sabem como é a coisa no Brasil; parece que o parlamento adivinhou que o STF poderia mudar de ideia mais tarde. Com efeito, em 2016 o STF muda de posição, não enfrentando esse dispositivo fruto da overruling anterior. Conclusão: o que o STF fez foi uma alteração jurisprudencial e não enfrentou um dispositivo que diz claramente aquilo que ele, STF, definiu em 2009. Sendo mais claro ainda: em 2011 o Parlamento veio atrás do que o STF decidiu em 2009 e aprovou o artigo 283 para explicitar a proibição de execução provisória. Mas o STF não obedeceu o que o parlamento decidiu. O overruling de 2009 se transformou nooverlapping de 2016.
Isso gerou duas ações (ADC 43, do PEN e a ADC 44, da OAB). Esta última cobrando explicitamente do STF a constitucionalidade espelhada do artigo 283 do CPP. E cobrando uma coisa chamada “autoridade do direito”. E limites interpretativos.
Depois do HC 126.292, houve decisões monocráticas concedendo habeas corpus e decisões negando. As concessivas se basearam na posição anterior do STF e na Constituição (por exemplo: aqui e aqui). Já as denegatórias (ler aqui) — especialmente da lavra do ministro Edson Fachin — invocaram o CPC para dizer que que o artigo 637 atribuía apenas o efeito devolutivo e o novo CPC haveria inovado e passado a possibilitar, excepcionalmente, efeito suspensivo (artigos 995 e 1027). Por decorrência, como o CPC admitiria excepcionalmente esse efeito, a decisão do STF de fevereiro apenas disse que em regra cabe execução provisória. Logo, com isso, não contrariou o artigo 283 e nem a CF. Na verdade, segundo o ministro Fachin, o novo CPC teria revogado o 283. O ministro tentou resolver a questão da presunção de inocência fundamentando-se apenas nos efeitos dos recursos, em regra apenas devolutivos — isto é, não suspensivos — o que demandaria o cumprimento imediato da sentença penal condenatória confirmada em segunda instância, antes, portanto, do trânsito em julgado.
Não vou discutir de novo o que já foi abordado por tanta gente. Vamos aguardar a decisão do STF. O que importa, agora, é saber qual é o papel do legislador e os limites da interpretação do direito. O direito é aquilo que o STF diz que é? Se isso é verdade, para que necessitamos de parlamento? Mais: O que vamos dizer aos nossos alunos? Que o Judiciário pode decidir como quer? Mas, não existem limites? Que Constituição é essa que não tem força normativa? Seria apenas uma folha de papel?
Pode ser que a CF seja só isso. Um ornamento. A decisão sobre a presunção da inocência é/será paradigmática. Nela estão envolvidos desacordos não meramente empíricos-subjetivos (números de recursos e estatísticas — todos contestáveis e não confiáveis — além de argumentos morais e políticos), e, sim, desacordos teóricos. O que queremos do direito: isto é o que está em jogo.
Mas, pelo amor ao debate, vamos lá: admitamos que seja bom para a sociedade (quem pode dizer isso?) a circunstância de que os condenados comecem a cumprir a pena depois do segundo grau. OK. Mas, quem é o Judiciário para dizer mais do que a Constituição e o parlamento? Pergunto: mesmo que houvesse uma enquete apontando que 80% aprova a execução provisória, o que isto teria a ver com a regra constitucional? Fosse isso decisivo, há números mostrando que mais de 60% aprovam a pena de morte. Um jurista-democrata deve dizer: e daí? A Constituição não é o remédio contra maiorias? E o STF não deve atuar contra majoritariamente para defender a Constituição? Ah, dirá o ilustre ministro Roberto Barroso: o STF é a vanguarda iluminista que empurra a história no Brasil (ver crítica . Claro. Só que tem um problema aí. Se isso for verdade, teremos um paradoxo: se o Ministro estiver certo, é porque fracassamos. Exatamente isso. Pelo bem da democracia, teremos que torcer para que o ministro esteja equivocado. E se ele estiver certo, nem precisaremos mais votar. Afinal, uma vanguarda iluminista peleará (expressão gaúcha) por nós. E nos indicará o caminho do progresso e do futuro.
Só teremos que alterar a Constituição: onde está escrito “todo poder emana do povo”, colocaremos “todo poder emana do judiciário”; e na ordem dos poderes da República, inverteremos: em vez de legislativo, executivo e judiciário (aproveitando, aqui, a fina ironia do ministro Marco Aurélio), escreveremos Judiciário, Executivo e legislativo.
Mas, pensando bem, estou me contradizendo: por qual razão necessitaríamos mudar a Constituição? Afinal, se o Direito é o que o Judiciário (ratio final, STF) diz que é, nem mesmo precisaremos alterar a Constituição. Simples assim.
Numa palavra final: em face de tudo isso, o que se espera é uma postura de humildade da Suprema Corte diante da Constituição e da legislação democraticamente aprovada. O STF não pode mais do que os limites semânticos do seu texto. E quem disse isso não fui eu: foi o ministro Roberto Barroso, no seu livro Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 2001, pp. 128-129. Ele diz também que “as mutações que contrariarem a Constituição podem certamente ocorrer, mas serão inconstitucionais”. Bingo, ministro!
Sim, o STF pode manter a decisão de fevereiro de 2016. Afinal, ele tem a última palavra. Mas seria melhor, se assim vier a fazer, que diga claramente estar utilizando argumentos utilitaristas-pragmaticistas. Seria, no limite, mais aceitável. O que parece não se mostrar adequado é dar uma roupagem jurídica a isso tudo". www.conur.com.br

Presunção de inocência . Parte 2

http://www.conjur.com.br/2016-set-01/stf-afastou-constitucao-antecipar-prisao-marco-aurelio
Por Pedro Canário.
Quando autorizou que a prisão seja executada depois da decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado, o Supremo Tribunal Federal “caminhou para a promulgação de verdadeira emenda constitucional”. No entendimento  do ministro Marco Aurélio, quando a corte, ao autorizar, por meio de um Habeas Corpus, que réus sejam presos mesmo com recursos pendentes de apreciação, violou o que diz inciso LVII do artigo 5º da Constituição.
O dispositivo diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A regra é depois repetida no artigo 283 do Código de Processo Penal, que só admite prisão antes do trânsito em julgado como medida processual cautelar.
É esse artigo o objeto de discussão no Supremo. Em duas ações declaratórias de constitucionalidade, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o Partido Ecológico Nacional (PEN) pedem que o tribunal declare constitucional o artigo 283 e, portanto, declare inconstitucionais as decisões que autorizem a execução das penas de prisão antes do trânsito em julgado.

Marco Aurélio votou pela constitucionalidade do artigo 283 e determinou a imediata suspensão de todas as execuções antecipadas de pena, bem como a revogação de todas as prisões que tenham sido decretadas antes do trânsito em julgado da condenação.
O julgamento começou nesta quinta-feira (1º/9), mas foi interrompido depois do voto do ministro Marco Aurélio, relator. Antes disso, os autores das ações e amici curiae fizeram suassustentações orais, seguida pela manifestação do procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
A execução provisória foi autorizada pelo Supremo em fevereiro deste ano. Por seis votos a cinco, o tribunal entende que, como os tribunais locais são a última instância que analisa provas de materialidade e autoria, a presunção de inocência se encerra ali.
Entretanto, para o ministro Marco Aurélio, a corte violou o inciso LVII do artigo 5º da Constituição. “O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A Carta Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória”, afirmou em seu voto.
“O abandono do sentido unívoco do texto constitucional gera perplexidades, presente a situação veiculada nestas ações: pretende-se a declaração de constitucionalidade de dispositivo que reproduz o prescrito na Carta Federal. Não vivêssemos tempos estranhos, o pleito soaria teratológico; mas, infelizmente, a pertinência do requerido na inicial surge inafastável.”
Vice-decano do STF, Marco Aurélio também repeliu os argumentos dos colegas de que a morosidade da Justiça leva a prescrição de ações penais, deixando em liberdade réus culpados. Ele lembrou, assim como fez na discussão de fevereiro, que o ministro Cezar Peluso escreveu uma proposta de emenda à Constituição para estabelecer que o trânsito em julgado ocorreria depois da decisão de segundo o grau, transformando os recursos ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo em ações rescisórias
“Mas essa ideia não prosperou no Legislativo. O Legislativo não avançou. Porém, hoje, no Supremo, será proclamado que a cláusula reveladora do princípio da não culpabilidade não encerra garantia, porque, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, é possível colocar o réu no xilindró, pouco importando que, posteriormente, o título condenatório venha a ser reformado”, disse o ministro, repetindo seu voto de fevereiro.
Enquanto isso, continuou o ministro, o Congresso reformou o Código de Processo Penal para adequar o artigo 283 à Constituição Federal, dizendo que toda prisão anterior ao trânsito em julgado só pode ser cautelar. “Revela-se quadro lamentável, no qual o legislador alinhou-se ao Diploma Básico, enquanto este Tribunal dele afastou-se.”
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terça-feira, 2 de agosto de 2016

JOGO PROCESSUAL PENAL . COMUNICAÇÃO

LIMITE PENAL

Não é preciso gritar para se 
fazer ouvir no jogo processual

Alexandre Moraes da Rosa. 20 de maio de 2016
Se no processo é necessário convencer o julgador, a argumentação jurídica ganha protagonismo. No jogo processual[1], então, devemos estar vinculados aos mecanismos de persuasão e convencimento. Cada jogo de linguagem é único, sendo necessário inventariar quais os meios de persuasão disponíveis, no contexto da situação comunicativa apresentada, em face da matriz processual (jogadores, julgadores, regras, recompensas, táticas e estratégias)[2]. Daí o papel relevante da construção de argumentos, uma vez que será necessário fundamentar, apresentar os argumentos incidentes no caso penal, bem assim o julgador precisará justificar o acolhimento ou rejeição. Aliás, as alegações finais servem justamente para propiciar este debate em contraditório, embora alguns entendam seu caráter ornamental.
A pretensão é a de convencer o auditório (juiz ou Tribunal), a partir de recursos lógico-formais-pragmáticos na e pela linguagem, de que a melhor compreensão do caso é a apresentada. Essa articulação, todavia, não se restringe aos aspectos jurídicos, dado que a compreensão também dialoga com mecanismos de cognição, psicológicos, sociológicos, dentre outros. A ampliação da argumentação jurídica, portanto, pode ser um dos caminhos para melhor compreensão do resultado. Isso significa que a lógica formal será necessária, mas não suficiente para o êxito. A antecipação dos possíveis contra-argumentos mostra-se como necessária. Vigora a plena dinamicidade argumentativa.
Por mais que acolha o modelo hermenêutico, a ampla maioria dos juristas opera com base na lógica da argumentação jurídica de viés analítico. Daí que é importante uma breve apresentação, sem que possa aprofundar a temática nos limites deste texto. Mas há vasta bibliografia para essa finalidade[3]. O que importa demonstrar é a relevância da temática para que se possa jogar de maneira mais consolidada nos jogos processuais.
Não se trata de mero debate, mas de cadeias de argumentação em que há objetivo por parte dos jogadores e uma pontuação pelo julgador, capaz de atribuir o sentido da produção probatória e da imputação no ato decisório. Para que a argumentação possa operar é necessário compreender o mapa mental dos jogadores e o contexto da decisão. As consequências e inferências serão de fundamental importância para o êxito das táticas e estratégias[4].
O processo penal será o palco em que os argumentos travarão a batalha[5]. Importante, no contexto, a distinção formulada por Peczenik[6] entre o sentido da norma “prima facie” e “tendo tudo em conta”, ou seja, em que a percepção universal do sentido ganha novos matizes no contexto de uma singularidade. Já sublinhei a importância dos contextos e no caso da distinção operada por Peczenik podemos autorizar que a compreensão “prima facie” somente ganha operatividade em um contexto situado no tempo[7], no espaço, e com seus jogadores determinados, que será o ponto inicial do sentido que advirá no processo argumentativo. Os pontos de partida dos jogadores podem ou não ser compartilhados, instaurando-se, a partir de então, alternativas de sentido, ambos — muitas vezes — justificados legalmente. Talvez se possa defender um sentido “prima facie” de textos normativos, mas será somente no contexto real de um jogo que o sentido transitará em julgado, embora a expectativa seja a prevalência do modelo acolhido pelos intérpretes autorizados do senso comum teórico dos juristas (Warat).
Ao invés de simplesmente negar os argumentos do adversário, de modo geral, a tática mostra-se inviável se a pretensão for a de o convencer. É que o enfrentamento (choque de versões) coloca o lugar de antagonista. Assim é que a reconstrução lógica do argumento do adversário, em cadeias de argumentação, mostra-se como necessária para sua relativização. Pode-se, com esse modo de articulação, caminhar-se junto e, no ponto em que há divergência, sublinhar a dissonância. Desconsiderar toda sua argumentação é uma tática equivocada.
Por exemplo, em caso de roubo, em que a tese defensiva seja a negativa de autoria, o caminhar argumentativo pode se postar somente na ausência de provas da autoria. Mas, talvez, reconhecer que o crime existiu, que há prova de que aconteceu, bem assim de que havia elementos mínimos para propositura da ação penal, mas que restaram arredados exclusivamente no tocante à autoria pelos argumentos x e y. Isso porque ao aceitarmos o desafio antecedente de “ver” o mundo como o adversário “pinta”, o convidamos a “ver” o mundo conforme nossos “olhos”, dando ensejo ao reconhecimento empático de similitude racional.
Esse último modelo argumentativo faz com o argumento final seja ouvido pelo adversário, não implica em descrédito, com a possibilidade maior de êxito. Aparenta que compreendemos e reconhecemos a sua forma de pensar, com as divergências tópicas que nos implicam em outra conclusão. Claro que o contexto do jogo ganha relevância. O detalhe de como se diz as mesmas coisas pode fazer toda a diferença. Não significa que, necessariamente, o jogador adversário terá “ouvidos” para nossos argumentos, mas sabemos que em alguns casos podemos pelo menos nos fazer ouvir. Reside na dificuldade em se escutar um dos maiores desafios da argumentação jurídica, posta de maneira selvagem. Somente assim se pode abrir ensejo de “capitulação” e êxito da estratégia.

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[2] VATTIMO, Giani. Enciclopedia Garzanti di Filosofia. Milán, 1993, p. 54; RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 13; RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 13; MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Tradução Conrado Hübner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 19; VOESE, Ingo. Um estudo da argumentação jurídica. Curitiba: Juruá, 2001, p. 29; ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. - 2.ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 33.
[3] ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. - 2.ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Siebeneicher. Rio de Janeiro: BTU, v. 1, 2010; BRITTO, Cláudia Aguiar Silva. Processo Penal Comunicativo: comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2014; GÜNTER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Claudio Molz. Rio de Janeiro: Forense, 2011; PERELMAN, Chaïm. Tratado de Argumentação. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002; HOLMES JR, Oliver Wendell. La senda del derecho. Trad. José Ignacio Solar Cayón. Madrid: Marcial Pons, 2012; REDONDO, María Cristina; SUCA, José María; IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Estado de Derecho y Decisiones Judiciales. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2009; LAPORTA, Francisco J; MANERO, Juan Ruiz; RODILLA, Miguel Ángel. Certeza y precedcibilidad de las relaciones jurídicas. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2009; MORESO, José Juan; PRIETO SACHÍS, Luis; FERRER BELTRÁN, Jordi. Los desacuerdos em el Derecho. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2010; AARNO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2010; BULYGIN, Eugenio; ATIENZA, Manuel; BAYÓN, Juan Carlos. Problemas lógicos em la teoría y práctica del Derecho. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2009.
[4] RAPOPORT, Anatol. Lutas, Jogos e Debates. Trad. Sérgio Duarte. Brasília: UNB, 1998, p. 207: “Aqui devemos assinalar a diferença entre debate e argumentação. Se tento convencer ou desconvencer alguém apresentando fatos ou chamando atenção para cadeias de consequências lógicas, estou argumentando. O sucesso da argumentação depende de que os fatos sejam examinados e de que a cadeia de consequências lógicas seja verificada”.
[5] BRITTO, Cláudia Aguiar Silva. Processo Penal Comunicativo: Comunicação Processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2014.
[6] PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. Springer Science+Bussines Media Dorderech, 1989, p. 114 e ss.
[7] AARNIO, Aulis. Una única respuesta correcta? In: AARNO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2010, p. 9-45.Revista Consultor Jurídico, 20 de maio de 2016,