Leiam o texto na íntegra (destaquei alguns trechos). O conhecimento sobre as coisas e o estudo contínuo permitem a luta contra as inumeradas arbitrariedades que perpassam (ainda) o sistema de justiça criminal do nosso país...
"Juíza que revogou a lei da Física e presidiu duas audiências ao mesmo
tempo".
21 de fevereiro de 2015, 8h01. www.conjur.com.br
"Desde logo, advirto o leitor: não se
trata de uma ficção (jurídica). Consta que, no interior de São Paulo, na
comarca de São José do Rio Preto, há uma juíza de Direito que ficou conhecida
por julgar de modo absolutamente alheio àquilo que as partes alegavam no
processo. Ela é tão diligente que, na semana passada, presidiu mais de uma
audiência ao mesmo tempo. Para isso, após encerrar a instrução criminal, quando
as partes iniciaram os debates, a juíza dirigiu-se à sala ao lado, onde iniciou
outra audiência. E, quando retornou, a sentença (condenatória, obviamente) já
estava pronta, independentemente do teor das teses sustentadas pela acusação e
pela defesa em suas alegações finais. Simples assim e, acima de tudo, muito eficiente.
Interpelada pela defesa, a juíza consignou ao final de sua decisão:
Após serem colhidos todos os depoimentos proferi a sentença, em meu
computador, enquanto o promotor de Justiça e o defensor apresentavam suas
alegações finais e para o bom andamento dos trabalhos, fui até a sala de
audiências da 1ª Vara Criminal presidir outras audiências, retornando. Não
havendo nenhum prejuízo para as partes, nada a ser acrescentado, mormente
porque está fundamentada a decisão judicial como determina a Constituição
Federal (processo 0025236-84.2014.8.26.0576).
Mas isto não é tudo. Inconformado, o advogado impetrou habeas
corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, requerendo a anulação da
audiência, em face da manifesta violação às garantias constitucionais do devido
processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e ainda o relaxamento da
prisão, em razão do excesso de prazo. Todavia, distribuído à 16ª Câmara
Criminal, o relator indeferiu a liminar com fundamento standard:
A providência liminar em habeas corpus somente é cabível quando a coação
é manifesta e detectada de imediato através do exame sumário da inicial.
E, a aventada nulidade arguida pela combativa defesa demanda análise de fatos,
documentos e informações, que devem ser prestadas pela D. Autoridade apontada
como coatora, a fim de que se proceda adequada e ampla cognição da questão por
parte da Colenda Turma Julgadora.Assim sendo, ausentes o “fumus boni iuris” e o “periculum in mora” a liminar
fica indeferida (processo 2020697-86.2015.8.26.0000).
Que tipo de decisões são estas? Sei bem que elas se repetem diariamente
nos quatro cantos do país. Mas, convenhamos, o caso ora narrado é de fazer
inveja à literatura (do absurdo). Nem mesmo Franz Kafka conseguiu ir tão longe.
Inclusive é possível arriscar que, se o célebre escritor tcheco vivesse
nos dias de hoje e tivesse conhecimento das ficções que permeiam a justiça
criminal brasileira, não precisaria abandonar o direito para escrever seus
contos e romances sobre a justiça. Ele poderia muito bem permanecer na carreira
jurídica, onde a ficção parece ocupar o lugar da realidade.
No caso, como se viu, a defesa não teve seus argumentos analisados em
primeira instância e tampouco no tribunal. Isto indica que, mesmo no centro do
país, ainda há lugares em que a Constituição de 1988 (e tudo aquilo que ela
representa no paradigma do Estado Democrático) parece não ter promovido nenhuma
ruptura no modo de “operar” o Direito.
Que tipo de fraude se tornou o exercício da ampla defesa no processo
penal brasileiro? Desde quando, além de onipotentes e oniscientes, os juízes
também são onipresentes? A que ponto nós chegamos? Será que a sustentação oral
realizada na colenda câmara em que atua o eminente desembargador é capaz de
surtir algum tipo de efeito? Alguém certamente dirá que, nos tribunais e cortes
superiores, é diferente porque a lógica (operacional) é outra. No entanto, como
se sabe, as decisões também já foram tomadas quando os processos são pautados
nos tribunais. De há muito, quando se iniciam as sessões de julgamento, todos
processos já contêm os votos do relator e do revisor. Na maior parte das vezes,
um pedido de vista é o máximo que a defesa pode obter. Mas isto é assunto para
outra coluna.
Estou curioso para ver o teor das informações que deverá prestar a
autoridade coatora nos próximos dias. E mais ainda para saber como se
comportarão os desembargadores no julgamento do habeas corpus. Se a nulidade
for convalidada pela 16ª Câmara Criminal do TJ-SP, talvez os advogados,
defensores e promotores também possam participar de duas ou mais audiências
simultaneamente, não? Talvez a juíza que revogou a conhecida lei da Física
segundo a qual “um corpo não pode ocupar, ao mesmo tempo, dois lugares no
espaço” tenha descoberto a saída para o problema da morosidade da Justiça
brasileira. Quem sabe ela seja indicada ao Prêmio Innovare deste ano". André Karam Trindade